ALAMEDA DA SAUDADE 113
por Rafael de Luna
Não foi como diretor de dois longas-metragens que Carlos Ortiz entrou para a história do cinema brasileiro. Isso se deveu, provavelmente, não por uma importância menor de seu lado cineasta, e sim pelo destaque que teve sua atuação fora dos sets de filmagem.
Ao longo dos anos 1950 Ortiz colaborou na revista Fundamentos – ligada ao Partido Comunista Brasileiro –, teve participações fundamental no I Congresso Paulista do Cinema Brasileiro e no I Congresso Nacional do Cinema Brasileiro, ambos em 1952, e escreveu livros como pioneiros manuais de cinema (como Argumento cinematográfico e sua técnica, 1949) e precursores de uma história do cinema brasileiro (Romance do gato preto, 1952). Além disso, foi professor e crítico de cinema durante muitos anos. Sua produção na imprensa já foi pesquisada por Carlos Berriel no livro Carlos Ortiz e o cinema brasileiro na década de 50 (1981), onde fica claro seu papel fundamental, por exemplo, num debate de viés econômico sobre o cinema brasileiro.
Entretanto, os dois filmes dirigidos por Carlos Ortiz – Alameda da Saudade 113 (1951) e Luzes nas sombras (1953) – jamais despertaram o mesmo interesse. Nesta segunda sessão de 2007 do cineclube Tela Brasilis, tentaremos contornar um pouco esse equívoco exibindo o primeiro filme de Carlos Ortiz como nossa colaboração para a mostra “Olhares Neo-realistas” a ser exibida na Cinemateca do MAM em março.
Pode-se talvez creditar o desinteresse por Alameda da Saudade 113 pelo fato de que o filme, diferentemente de Rio 40 graus, por exemplo, não tenha representado uma concretização tão clara – e brilhante – dos anseios daqueles que desejavam aquilo que ficou conhecido como “cinema independente dos anos 50”. Apesar de contraditórias, como já apontou Maria Rita Galvão, essas idéias vinham sendo desenvolvidas ainda durante a voga do ideal de cinema da Vera Cruz, e pregava, grosso modo, um cinema realista, de qualidade técnica e “seriedade” na abordagem (diferentemente das “grossuras mal-feitas” das chanchadas), realizado fora dos estúdios e com temática nacional. É uma questão interessante pensar como Alameda da Saudade 113 se encaixa num momento inicial de gestação desses anseios, compartilhados pelo seu próprio diretor e argumentista.
O filme se inicia num cemitério na cidade de Santos, para onde ele retornará em seu final. Um forasteiro se aproxima de um coveiro e este começa a lhe contar a trágica e conhecida história de amor de Inês (Sônia Coelho) e Rui (Rubens de Queiroz), dando início ao flashback que ocupará praticamente todo o filme. Resumidamente, Rui conhece uma bela moça num baile de carnaval e se apaixona perdidamente. O casal desfruta do arrebatador romance nos dias seguintes, mas Rui percebe que algo atormenta sua amada Inês – ela nunca permite que ele o deixe em casa e a visão de qualquer criança lhe provoca tormentos. Quando finalmente Inês concorda que ele vá em sua casa (no dia de seu aniversário), Rui encontra-se com Olga, mãe de sua namorada, que lhe diz que Inês, uma sensível poetisa, morreu dez anos antes. Inconformado, Rui se junta ao seu amor no além, diante de seu sepulcro cujo endereço é justamente o título do filme.
É uma grande curiosidade o filme enveredar por um tema metafísico – o amor além da morte – com uma seriedade incomum no cinema brasileiro (o tema tem servido principalmente a comédias, do Oscarito de Fantasma por acaso, ao Renato Aragão de Simão, o fantasma trapalhão). Trata-se de uma gênero – ou “sub-gênero” – que é geralmente associado exclusivamente ao cinema americano e que no Brasil só costuma ser tratado em tom de paródia e “defeitos especiais”. Podemos sugerir descompromissadamente que o filme de Ortiz é um parente distante de filmes de amor hollywoodianos que atravessam a barreira do tempo (Em algum lugar do passado) ou não respeitam os limites da vida e da morte (Ghost e Sexto Sentido).
Como uma espécie de melodrama espírita, Alameda da saudade 113 jamais, em momento algum, desvia de seu tom de extrema seriedade ou abre concessões para o humor, diferentemente de diversos outros exemplares mais conhecidos do chamado cinema independente, como Rio 40 graus, Agulha no palheiro ou O grande momento. Nesse sentido, devido a certa morbidez e tristeza latente, o filme de Ortiz se aproxima de um melodrama da Vera Cruz como o belo Floradas na serra, por exemplo.
Por outro lado, será que se pautando por questões universais – vida, morte, amor -, Alameda da saudade 113 se afasta dos temas genuinamente nacionais e, sobretudo, populares? Se num primeiro momento das discussões que permearam os anos 1950, a preocupação se dava menos com a forma e sobretudo com conteúdos e histórias nacionais, vale ressaltar que o filme se inspirou, como anunciam os letreiros iniciais, numa famosa história da cidade de Santos – um folclore moderno ou uma lenda urbana, pode-se dizer. Nos créditos há, inclusive, um agradecimento ao “povo santista” e ao “homem de rua”. Entretanto, dentro da diegese, onde está esse homem de rua?
Na verdade, percebe-se que os personagens e cenários principais do filme pertencem ao que há de mais belo na sociedade santista. Rui e Inês são jovens, brancos e belos (cujos perfis fotogênicos são explorados pela fotografia), que freqüentam bons restaurantes e saraus de poesia. Da cidade de Santos, se destaca a orla moderna e urbanizada (num retrato parecido com o que o cinema carioca geralmente fazia de Copacabana), enquanto numa visita à São Paulo, os personagens percorrem um belo parque. É nessa visita que se dá um momento interessante, quando Rui e Inês se vêem diante de um pregador religioso cercado por populares numa praça pública (lembrando uma cena de A falecida). A câmera se detém, demorada e repetidamente, nas faces daquelas pessoas, num misto de fascínio e interesse. Entretanto, como se nota no próprio enquadramento, o casal de protagonista está no meio da roda e aquelas pessoas não fazem mais do que compor um cenário.
Esses inserts dos populares se assemelham a outros de paisagens da praia, do mar ou de barcos, que podem ser associados a uma estética antropológica-jornalística de cinejornais. A bela e acadêmica fotografia de Alameda da Saudade 113, a cargo do ucraniano George Tamarski, se destaca pelo equilíbrio da composição fotográfica de luzes e sombras. Chama a atenção, nesse sentido, a grande quantidade de cenas externas (praia, parque, cemitério), fotografadas com notável controle da luminosidade. Não espanta o nome da produtora de cinejornais Divulgação Cinematográfica Bandeirante nos créditos do filme.
Por fim, outro elemento presente é uma reiteração através de simbolismos visuais que parecem remeter a uma tradição narrativa do cinema mudo (de permanência, por exemplo, nos filmes sonoros de Adhemar Gonzaga ou Humberto Mauro), ilustrando, por exemplo, a circularidade e a duplicidade da vida (nascimento e morte) através do reflexo na mesa e no lago, ou das figuras circulares e duplas na bóia na praia ou na pista de dança e nas mesas vazias do clube. Além disso, ao longo da narrativa surgem inúmeras "pistas" para o mistério do filme, através da constante repetição de frases que apontam para a particularidade do encontro do casal (o baile no “clube dos finados e refinados”, onde “até a morte vem dançar”) e do romance (a mensagem sorteada do realejo: “achaste seu novo amor, fiel e forte como a morte”).
Por todos os motivos, além de uma raridade do cinema brasileiro, Alameda da Saudade 113 é definitivamente um filme curioso e que em seus melhores momentos consegue alcançar a melancolia de um amor impossível.
Comunidade: www.orkut.com/Community.aspx?cmm=1807860
Blog: www.telabrasilis.blogspot.com
Fotolog: www.fotolog.net/telabrasilis
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